30 de mai. de 2007

Privacidade?

Esse conceito só existe pra quem cresceu fora da China. Aqui, reina a convivência coletiva, agrupada, com poucas barreiras entre o "meu", o "seu", o "nosso". Talvez tenha algo que ver com os fatos históricos, a revolução cultural chinesa, a não-propriedade privada, os 1,3 bilhões de cidadãos... Só sei que é humanamente impossível explicar à massa local o porquê de querer manter um espaço vital nos moldes do ocidente.


Sempre que aparece um chinês desconhecido em casa, ele(a) entra, mexe em tudo, como se tivesse no próprio lar. Outro dia, um rapazinho, que veio entregar umas flores, não satisfeito com a posição de umas revistas jogadas em cima da mesa, foi lá. Empilhou tudo, ajeitou os quatro ângulos do montinho com as mãos e colocou um porta-retrato em cima. Ainda olhou pra mim, em seguida, e fez um “positivo” com o dedão, rindo, todo contente. Sem um dente da frente.

Aliás, já na minha primeiríssima semana de habitante em Pequim, fui brindada com uma “passagem bíblica”: Tinha marcado de estar em casa às 2:00PM para receber um “design” (superlativo otimista de ‘carpinteiro’) que viria tirar as medidas do quarto para fazer um armário. Me atrasei. Às 2:20PM, quando abro a porta DA MINHA RESIDÊNCIA, dou de cara com dois senhores chineses, completamente ambientados dentro DO MEU APARTAMENTO. Só faltaram dizer “entra, querida, fica à vontade que a casa é sua”. Ainda saí e olhei novamente o número na porta. “Sim, é o meu”. Enquanto eu tentava perguntar – em inglês, em vão – que diabos aqueles dois estavam fazendo ali, o chinês-chefe começou a gesticular e falar sem parar (Aqui, a moda é falar alto, berrar, se preciso for... E dizer a m-e-s-m-a frase umas 4, 5 vezes – como, se com a repetição, o estrangeiro passasse a entender mandarim). Vendo que o sujeito era incansável, lancei mão do clássico “uóóóó... diiing buuu... dong” (a frase do milhão: “escuto, mas não entendo (o que você tá dizendo)”). Pra ser mais clara, fiz também sinal de STOP e liguei pro lobby. Pedi ao porteiro, que falava um inglês rústico, pra subir e dar uma força.

Quando surge o porteiro, serelepe e faceiro, começa a fazer sua particular “tradução” (ao estilo do filme 'Lost In Translation': a conversa entre asiáticos é longuérrima. A tradução pro ocidental vem em forma de três - quando muito, quatro - palavras. E você finge que acredita, porque, senão... vai onde? Ao Procom?). Peço ao caro porteiro pra perguntar aos bons senhores chineses desconhecidos como eles dois entraram na minha casa... E pra resumir a ópera, o que aconteceu foi que - depois de muito aparentar que não me incomodava fazer cara de paisagem, enquanto assistia àquela particular discussão entre eles -, eu soube que um deles (o que tinha pinta de chefe) trabalha no Management Office do condomínio e tinha uma cópia da chave porque, até então, ele tinha sido incubido de mostrar o local aos potenciais inquilinos - apesar de que o aluguel daquele apartamento já estava sendo pago havia DOIS meses. Pra averiguar os fatos, o homem ainda me sugeriu que eu ligasse pro proprietário (que vem a ser um sueco, alheio a tudo isso, lá na Europa). Bom, “vamos encurtar isso, moço”. E esclareço: “Quero a chave de volta”. “Agora!” A contragosto, o porteiro traduziu meu 'gentil' pedido. E o homenzinho, ainda mais contrariado, relutou, relutou, mas acabou devolvendo a chave. Pra ficar tranquilo, me fez escrever um “recibo” num pedacinho de papel amassado, prontamente sacado do bolso: “I received the key of the apartment, signed: Juliana Vale”. Lembrando: era a chave DO MEU PRÓPRIO LAR (onde eu tinha passado as duas anteriores noites e por onde se viam espalhados todos meus pertences).

Mais tarde, nesse exato mesmo dia (foi um dia longo!) e ainda com a presença do porteiro-intérprete em casa, se apresenta o designer que, tinha vindo tirar as medidas do armário e vai – sozinho, sem maiores cerimônias –, pro meu quarto, fazer o trabalho dele. (Ah! Nisso tudo, você poderia se perguntar: “então, quem era o segundo chinês invasor, que acompanhava o dublê de corretor imobiliário?”. Pois é. Não sei, nem saberei jamais. Era um passante, um amigo, um parente, o namorado, sei lá. Estava por alí, se distraindo...). Ainda estava eu, me decidindo sobre pedir aos chineses-intrusos-sem-papel-definido para irem embora, dispensar o porteiro ou seguir o designer, quando me aparecem três (novos) chineses, todos uniformizados, que nem clones, para entregar uma mesa que tinha sido comprada na véspera. Antes que eu tivesse a chance de dizer “pode entrar”, o porteiro já se incorporou no papel de dono da casa e leva os três paus-mandados até o quarto. Não sem antes, parar ao lado de um das várias caixas de mudança que entulhavam o corredor e puxar alguns livros de dentro de uma dela (“Uau! Você lê muito!”). Na seqüência, se senta comodamente numa cadeira giratória e, enquanto rodopia alegremente, testando a qualidade do assento, atende o celular e começa, simultaneamente, a dar ordens aos homenzinhos uniformizados. O designer no quarto, sozinho. O chinês sem-papel-definido, irado, ao lado do porteiro, também dando ordens... A porta abre-se de novo (campainha pra que? Não tava trancada a chave... O pessoal não se faz de rogado). E era um técnico com seus quatro (sim, quatro) subordinados, que tinham vindo instalar a lava-louça. Primeiro, berraram comigo em chinês. Depois, me ignoraram e passaram a tratar com um dos entregadores da mesa – que, àquela altura, era outro íntimo do ambiente. Adentraram a cozinha e ainda chamaram, pelo interfone, mais dois engenheiros, que chegaram logo depois.

Perdi o controle da situação (se é que tive isso, em algum momento, depois das 2:20PM). Enquanto contabilizava 12 pessoas – completamente à vontade dentro da MINHA CASA –, me dei conta de que quem menos autoridade tinha ali era eu (pudera: só com o porteiro eu era capaz de me comunicar - e, mesmo assim, com frases curtas, sem artigo ou plural). Foi incontrolável. Virei as costas pra aquele falatório, entrei (sozinha!) no MEU banheiro e comecei a rir. Rir. Rir. Rir. Foi compulsivo. Olhava pro espelho e ria ainda mais. Sentei no chão e apertei a barriga com as duas mãos. Ria. Tive um acesso de riso irreprimível, involuntário. Não sabia se aquilo era real (os 12 homens ao meu redor, todos gritando, eu não captando porra nenhuma, o porteiro na cadeira, o funcionário da loja fazendo as honras da casa, aqueles dois com a chave do apt, o designer sozinho, perdido em outro canto...), ou eu tava sonhando. Sem internet, TV (aliás, nem cama tinha em casa ainda, naquela época), peguei o celular e disquei pro cúmplice. Antes de eu conseguir dizer alguma coisa, ele pergunta, preocupado: “Ju, você tá chorando? O que houve? Fala, Ju! Fala! Aconteceu alguma coisa?”. Não, era só eu, vivendo no meu reality show privado. Não conseguia parar de rir. Tinha até lágrimas – e aqueles roncos espontâneos que a gente dá quando ri demais. Parecia sob efeito de algum entorpecente. Finalmente, respireu fundo e consegui soltar: “Eu...tô...num freak show”.

E não sou a única

Uma amiga espanhola, que também mora aqui em Pequim há alguns meses, ligou pra contar que a professora de chinês (uma senhora na casa dos 50, curiosa e tosca como uma personagem em estado bruto) inventou de fazer uma visita durante o feriado. Minha amiga pensava que era pra se encontrarem e, dali, irem juntas a um mercado onde vendem jóias - porque a amiga é gemóloga e a professora, em outra ocasião, tinha dito que queria a ajuda dela pra comprar uns anéis. Mas não. A professora chinesa aparece na casa da amiga espanhola com três parentes (uma sobrinha, uma prima e o marido da prima!!!), mais uma filmadora – já ligada. Amiga abre a porta e dá de cara com aquilo. Os quatro eufóricos, falantes, adentraram com flores, bombons e duas garrafas de vinho. Não deram nem tempo pra amiga pensar em reagir. Já estavam filmando. Foram cômodo por cômodo. Até abriram as portas dos armários pra registrar dentro! E, depois de também tirar mil fotos e analisar detalhadamente cada objeto da casa – sempre exclamando “Que lindo! Que lindo!” –, se sentaram no sofá, com caras de estudantes comportados. A espanhola disse que ficou lá – meio desbundada, meio chocada – naquela situação de tentar puxar assunto com quatro estranhos que só mexiam a cabeça, concordando. Ou repetindo que o apartamento era lindo. Aí, ela pergunta: “Então? Aonde vamos?”. E eles: “Não, não. Não queremos molestar... Outro dia, quando você tiver tempo”. E tudo isso na base do inglês precário – através dos parentes da professora, que minha amiga nunca tinha visto mais gordos na vida. Antes que ela conseguisse descobrir “mas, então, vocês vieram só pra filmar minha casa?”, o povo se levanta, recolhe os pertences e vai embora. Assim como chegaram, sumiram. Opinei: “Amiga, ou era uma pegadinha e você tava aparecendo ao vivo na TV estatal, ou sua vida, agora mesmo, virou atração no bairro da professora: "Geeeente, olha só a linda casa da minha aluna rica!”.

14 Comments:

At 31/5/07, Blogger Duda said...

ju, ri muito com vc! impagável!!

 
At 31/5/07, Blogger Unknown said...

Adorei a invasão chinesa. Memórias para a vida inteira. Beijinhos, Cris

 
At 31/5/07, Anonymous Anônimo said...

Tem a senha aí pra mais um "Acesso de riso" ?!

EXCELENTE, JU !!!!!!!!!!!!!

 
At 31/5/07, Anonymous Anônimo said...

Muito boaaaaa!!!!!!!!!!rsrsrsrsrssr

 
At 31/5/07, Anonymous Anônimo said...

adorei a versao chinesa do capacho de vaca ! os espanhois nao sao de nada :)

so faltou alguem abrir o armario e comer sua pringles ....

 
At 31/5/07, Blogger Juliana Vale said...

Jan, vc é uma peça! hahaha Q memoria!!!

 
At 31/5/07, Anonymous Anônimo said...

HUAHUAHUAHUAHUA!!!!!!!!!!
FODA! queria muito ter visto isso!!!!!!!

 
At 1/6/07, Anonymous Anônimo said...

Ju,

isso tudo é muito, muito bizarro! Eu não sei se conseguiria rir que nem vc, não. Acho que ia chorar, de desespero e ter um mau humor infernal! beijos e saudades!

 
At 4/6/07, Anonymous Anônimo said...

Juliana,

Engraçadíssimo!! é... depois dessa eu vou parar de dizer que notamos um leve choque cultural ao voltar pro Canada depois de 1 ano em Barcelona ;)

Bjos

 
At 4/6/07, Blogger Helena said...

Olha Juliana, o texto é muito bom, muito engraçado. Mas simplesmente inacreditavel. Acho que você deve estar morando é em algum fim de mundo no interior do Brasil e o tédio te faz imaginar todas essas doidices potencialmente chinesas!

(Acho que se fosse eu, ia ter um ataque de riso também. Nenhuma outra solução!)

 
At 5/6/07, Blogger Juliana Vale said...

Helena, vc não é a única. Qdo me escuto, contando essas histórias, tb fico achando q isso não pode ser real. Aconteceu assim mesmo??? Mas te prometo q não precisei aumentar nada nesse texto. Aliás, depois de tantas situações bizarras aqui em Pequim, já me peguei perguntando: "No mundo real, eu acharia isso normal ou anormal?". Tenho a sensação de q, a qq hora, alguém vai berrar 'corta!'

 
At 5/6/07, Anonymous Anônimo said...

hilario

 
At 8/6/07, Blogger Nina said...

Juliana,
Sou amiga da sua mãe e acompanho, de vez em quando, suas aventuras mandarins. Li a do limpador de vidros e agora esta! Inacreditável!
Vc descreveu a cena perfeitamente.
Lendo, rindo e imaginando a sensação de irrealidade que vc deve ter sentido.
Bjs do Brasil,
Neyza

 
At 29/8/07, Anonymous Anônimo said...

Menina, eu me acabei de rir!! Pai Eterno..num sei se conseguiria morar nesse lugar! Tá doido! rsrrs Me diz uma coisa: Quando vai atualizar seu blog? e aproveitando a onda de privacidade zero! rsrs como vc foi parar ai? rsrs BJS!
TATI BAHIA

 

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